a semente de romã
ultimamente não consigo me interessar por nada que não seja anne carson, a poeta e classicista. devo entender só metade do que ela escreve, mas me basta. a outra metade eu deixo flutuando no espaço. aprecio o mistério.
não me lembro de como encontrei o “sobre aquilo em que eu mais penso”, livro de ensaios escrito por ela. às vezes as coisas chegam até mim de um jeito que também não compreendo. estava buscando por mulheres que falassem de mitologia grega de um jeito que me interessasse, já que o que eu gosto de saber sobre esse assunto tem pouco a ver com guerras ou feitos heróicos. de repente estava lendo anne carson. essas duas coisas estão ligadas, não poderia ser de outra forma, mas como fui de um ponto ao outro, não sei. dizem que tudo é um sinal, se você for louco o suficiente. talvez seja isso.
aconteceu de novo, enquanto pensava neste texto, antes de dormir. peguei meu kindle, não me interessei por nada da biblioteca, fui buscar por algo novo e baixei um amostra de um livro de poemas da louise glück, de quem só tinha ouvido falar. já no índice, encontrei um poema com o nome do meu personagem mitológico preferido, aquele que acendeu meu amor pela mitologia, minha obsessão do último ano: perséfone.
meu encantamento por essa história começou quando vi, em roma, a escultura que bernini fez sobre ela: uma das memórias mais impressionantes que tenho, por estar ligada a uma sensação de estranheza - lembro de ser impossível não reparar na justaposição de tensão, tristeza e beleza transportadas do mito pro mármore. não vou tentar dar conta da complexidade da história neste texto, quem quiser que vá até onde seu interesse levar em busca de como perséfone e sua mãe, deméter, deram origem às estações do ano. e, quem for como eu, que embarque numa espiral sem fim sobre versões diversas e interpretações sobre mães e filhas, morte e renascimento, vingança, tornar-se mulher, estar no mundo, etc.
por enquanto, compartilho com vocês o poema que li, a genialidade da louise glück ao traduzir algumas das tantas camadas dessa história, e o mistério que resta pra todos nós:
Perséfone, a andarilha Na primeira versão, Perséfone é tomada da mãe e a deusa da terra castiga a terra - isso está de acordo com o que sabemos sobre o comportamento humano, que os seres humanos obtêm profunda satisfação em causar dano, especialmente dano inconsciente: podemos dar a isso o nome de criação negativa. A primeira residência de Perséfone no inferno continua sendo esmiuçada por eruditos que debatem as sensações da virgem: teria ela cooperado com seu rapto, ou foi drogada, violada à força, como acontece tantas vezes hoje com as garotas modernas? Como é bem sabido, a volta do ser amado não corrige a perda do ser amado: Perséfone volta para casa tingida de sumo vermelho como um personagem de Hawthorne - Não estou segura de que vou manter a palavra: a terra é a "casa"de Perséfone? Ela está em casa, possivelmente, na cama do deus? Está em casa em algum lugar? Ela é uma andarilha nata, em outras palavras uma réplica existencial de sua própria mãe, menos entorpecida por ideias de causalidade? Não estamos autorizados a gostar de ninguém, sabia? Os personagens não são pessoas. São aspectos de um dilema ou conflito. Três partes: tal como a alma se divide em ego, superego e id. Assim também os três planos do mundo conhecido, uma espécie de diagrama que separa o céu da terra do inferno. Pergunte a si mesmo: onde está nevando? Branco de esquecimento, de profanação - Está nevando sobre a terra; o vento frio diz Perséfone está fazendo sexo no inferno. Não sabe, como nós não sabemos, o que é inverno, só sabe que é a causa dele. Está deitada na cama de Hades. O que tem na mente? Sente medo? Alguma coisa cancelou a noção de mente? Ela sabe que a terra é governada por mães, isso ao menos está claro. Também sabe que já não é o que conhecemos por garota. No que diz respeito a encarceramento, acredita que foi prisioneira desde que foi filha. As terríveis reuniões que a esperam ocuparão o resto de sua vida. Quando o anseio de expiação é crônico, feroz, não escolhemos nosso estilo de vida. Não vivemos; não temos licença para morrer. Ficamos à deriva entre terra e morte que parecem, afinal, estranhamente iguais. Os eruditos dizem que é inútil saber o que queremos quando as forças que tratam de controlar-nos poderiam matar-nos. Branco de esquecimento, branco de segurança - Dizem que há uma fissura na alma humana que não foi construída para pertencer inteiramente à vida. A terra Nos pede que neguemos a fissura, uma ameaça disfarçada de sugestão - como vimos na história de Perséfone que deveria ser entendida como uma discussão entre a mãe e o amante - a filha é apenas carne. Quando a morte a confrontar, não terá visto nunca o prado sem as margaridas. De repente ela já não está cantando suas canções de donzela sobre a beleza e a fecundidade da mãe. Ali onde está a fissura, está a fratura. Canção da terra, canção da visão mítica da vida eterna - Minha alma destroçada com o esforço de tentar pertencer à terra - O que fará quando chegar sua vez no campo com o deus?